E a palavra sophia? Sophia que dizer o conhecimento, a sabedoria. Filosofar é amar, buscar a sabedoria e o conhecimento. Os gregos tinham a clareza de que era impossível ao homem possuir toda a sophia. Só se pode possuir parte dela e essa parte que se possui não é digna do nosso amor porque é loucura se buscar (ou amar) o que já se tem. Essa minoria dos homens chamada filósofos ama e busca a sabedoria ou o conhecimento que ainda não possui não são loucos. Loucos são a maioria dos homens, que param de buscar a sophia por se apegarem ao que já sabem, desprezando a grandeza do saber que ainda está oculto.
É muito significativa a a história de Sofia e Ana, sua irmã mais nova. Um dia, elas foram ao pomar colher amoras para sua mãe e chegando lá viram amoras pequenas e mirradas. Ana colheu algumas amoras pequenas enquanto Sofia seguia adiante à procura de amoras melhores. Ana queria voltar logo para casa por isso estava aborrecida com a viagem. Andaram uns minutos e chegaram a um lugar onde havia mais amoras, bem melhores que as primeiras, e assim paravam, colhiam e seguiam andando. Quanto mais avançavam, descobriam vegetações de amoras cada vez mais apetitosas. Em cada parada, Ana sempre dizia que já bastava, mas Sofia a incentivava a seguir adiante dizendo: "Vamos tentar encontrar amoras melhores que estas. Deve haver mais logo adiante". Assim, impaciente e contrafeita, Ana seguia Sofia até que chegaram a um lugar onde viram amoras gigantes, tão grandes e suculentas que mais pareciam maçãs. Maravilhada com aquele achado, Ana, começou a colher as amoras maravilhoras dizendo: "Como você sabia que essas amoras eram melhores que as outras? "Eu não sabia", respondeu Sofia despreocupadamente. Preocupada em encher o cesto, Ana não percebeu a ausência de Sofia, mas quando levantou os olhos viu que sua irmã embrenhava-se pomar adentro. "Sofia", gritou Ana medrosa e impaciente, pois os primeiros raios avermelhados do crepúsculo já começavam a aparecer, "o que você está olhando aí? Vamos logo, o cesto já está cheio, já é tarde, mamãe deve estar preocupada...". Sem parar de caminhar, Sofia disse como que para si mesma: "Se chegamos aqui e até achamos amoras gigantes... Eu preciso saber que tipo de amoras iremos encontrar agora."
Ana é a ciência. Sofia é a Filosofia. As amoras são as respostas, as descobertas. Uma valoriza o acúmulo das descobertas e por isso contenta-se em possuir o achado. A outra vê na própria busca o sentido da viagem. A filosofia não ama as respostas e as perguntas.
A busca pela sabedoria, pelo conhecimento com sentido, começa com a atitude filosófica. Essa atitude expressa-se na palavra grega thaumazein (admiração, espanto). "Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar" [1]
O poeta Fernando Pessoa chama esse espanto de pasmo essencial em seu poema O meu olhar:
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem
Sei ter o pasmo essencial
Que tem um acriança se, ao nascer,
Reparasse que nascesse deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo..[2]
Adotar uma atitude filosófica é olhar as coisas como se fosse pela primeira vez, é ficar admirado, espantado. Para uma criança pequena essa emoção é natural porque ela realmente está vendo o mundo pela primeira vez, mas não é tão natural para a maioria dos homens, pois eles já estão anestesiados pelo cotidiano de suas vidas. Segundo o senso comum, espantar-se diante do que "já se conhece" é loucura. Mas o filósofo não pode pensar segundo o senso comum. Ele deve ter bom-senso para entender que não conhecemos o bastante. É por essa razão que são poucos os filósofos. O portal de entrada da filosofia exige algo difícil para o maioria dos homens adultos: ver o mundo com os olhos de uma criança.
Parece-nos que a criança vem ao mundo sem idéias preconcebidas. É no processo de socialização que os conceitos já estabelecidos no universo cultural vão se incorporando ao indivíduo. Por isso é que todo indivíduo socializado é um indivíduo que se relaciona com o mundo através de preconceitos, ou seja, todo indivíduo humano é preconceituoso.
Mas se o processo de socialização é um processo de assimilação de preconceitos isso não significa que não se pode abrir mão dos preconceitos assimilados. Quem se propõe a filosofar deve por em dúvida os preconceitos assimilados. No esforço de chegar a verdade. É necessário duvidar daquilo que foi ensinado para começar de novo. É por essa razão que se diz que a filosofia tem inicialmente que destruir para depois construir. A filosofia socrática é um bom exemplo desse processo.
Quando o homem experimenta a atitude filosófica, o passo inicial está dado, mas apenas o espanto e a admiração não fazem de alguém um filósofo. Há que saber indagar e refletir. A indagação é a expressão de uma pergunta, geralmente sobre: a)o que é a coisa; b)como é essa coisa; c) de que forma eu percebo essa coisa. Esta última indagação só pode ser respondida com o ato de reflexão, porque, semelhante a uma imagem diante do seu reflexo num espelho, o pensamento deve ficar diante de si mesmo a fim de poder investigar a própria capacidade de perceber as coisas. A reflexão filosófica é um "voltar-se para si mesmo" a fim de apurar as próprias limitações e possibilidades de conhecimento. Essa reflexão não é uma devaneio fantasioso: é uma investigação. A investigação filosófica consiste em "repensar o já pensado, para pensar o ainda não pensado".[3]
Notas
[1] Aristóteles. Metafísica. Brasília: Editora da UNB, l985. I, 2, 982b.[2] Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio. p. 15.
[3] Martin Heidegger. Que é isto a Filosofia? Identidade e Diferença. São Paulo: Duas Cidades, 1971. p. 19.
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