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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A palavra filosofia


Vamos começar por uma análise etimológica, que é o estudo das origem das palavras. A palavra filosofia é uma junção de duas palavras gregas: philos + sophia. Em grego, escreve-se da seguinte forma:
palavra_filos_grego.gif (168 bytes) sophia
Os gregos antigos usavam a palavra philos (ou philia) como sinônimo de "gostar de algo", "sentir atração por algo", "nutrir amizade ou amor por alguma coisa". Às vezes philos também significava "sentir falta de", "querer buscar algo". Ainda hoje, quando alguém demonstra gostar de ajudar os outros seres humanos, esse alguém é chamado de filantropo. Antropo significa humano ou humanidade. Filantropia significa amor pela humanidade.
E a palavra sophia? Sophia que dizer o conhecimento, a sabedoria. Filosofar é amar, buscar a sabedoria e o conhecimento. Os gregos tinham a clareza de que era impossível ao homem possuir toda a sophia. Só se pode possuir parte dela e essa parte que se possui não é digna do nosso amor porque é loucura se buscar (ou amar) o que já se tem. Essa minoria dos homens chamada filósofos ama e busca a sabedoria ou o conhecimento que ainda não possui não são loucos. Loucos são a maioria dos homens, que param de buscar a sophia por se apegarem ao que já sabem, desprezando a grandeza do saber que ainda está oculto.
É muito significativa a a história de Sofia e Ana, sua irmã mais nova. Um dia, elas foram ao pomar colher amoras para sua mãe e chegando lá viram amoras pequenas e mirradas. Ana colheu algumas amoras pequenas enquanto Sofia seguia adiante à procura de amoras melhores. Ana queria voltar logo para casa por isso estava aborrecida com a viagem. Andaram uns minutos e chegaram a um lugar onde havia mais amoras, bem melhores que as primeiras, e assim paravam, colhiam e seguiam andando. Quanto mais avançavam, descobriam vegetações de amoras cada vez mais apetitosas. Em cada parada, Ana sempre dizia que já bastava, mas Sofia a incentivava a seguir adiante dizendo: "Vamos tentar encontrar amoras melhores que estas. Deve haver mais logo adiante". Assim, impaciente e contrafeita, Ana seguia Sofia até que chegaram a um lugar onde viram amoras gigantes, tão grandes e suculentas que mais pareciam maçãs. Maravilhada com aquele achado, Ana, começou a colher as amoras maravilhoras dizendo: "Como você sabia que essas amoras eram melhores que as outras? "Eu não sabia", respondeu Sofia despreocupadamente. Preocupada em encher o cesto, Ana não percebeu a ausência de Sofia, mas quando levantou os olhos viu que sua irmã embrenhava-se pomar adentro. "Sofia", gritou Ana medrosa e impaciente, pois os primeiros raios avermelhados do crepúsculo já começavam a aparecer, "o que você está olhando aí? Vamos logo, o cesto já está cheio, já é tarde, mamãe deve estar preocupada...". Sem parar de caminhar, Sofia disse como que para si mesma: "Se chegamos aqui e até achamos amoras gigantes... Eu preciso saber que tipo de amoras iremos encontrar agora."
Ana é a ciência. Sofia é a Filosofia. As amoras são as respostas, as descobertas. Uma valoriza o acúmulo das descobertas e por isso contenta-se em possuir o achado. A outra vê na própria busca o sentido da viagem. A filosofia não ama as respostas e as perguntas.
A busca pela sabedoria, pelo conhecimento com sentido, começa com a atitude filosófica. Essa atitude expressa-se na palavra grega thaumazein (admiração, espanto). "Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar" [1]
O poeta Fernando Pessoa chama esse espanto de pasmo essencial em seu poema O meu olhar:
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem
Sei ter o pasmo essencial
Que tem um acriança se, ao nascer,
Reparasse que nascesse deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo..[2]

Adotar uma atitude filosófica é olhar as coisas como se fosse pela primeira vez, é ficar admirado, espantado. Para uma criança pequena essa emoção é natural porque ela realmente está vendo o mundo pela primeira vez, mas não é tão natural para a maioria dos homens, pois eles já estão anestesiados pelo cotidiano de suas vidas. Segundo o senso comum, espantar-se diante do que "já se conhece" é loucura. Mas o filósofo não pode pensar segundo o senso comum. Ele deve ter bom-senso para entender que não conhecemos o bastante. É por essa razão que são poucos os filósofos. O portal de entrada da filosofia exige algo difícil para o maioria dos homens adultos: ver o mundo com os olhos de uma criança.
Parece-nos que a criança vem ao mundo sem idéias preconcebidas. É no processo de socialização que os conceitos já estabelecidos no universo cultural vão se incorporando ao indivíduo. Por isso é que todo indivíduo socializado é um indivíduo que se relaciona com o mundo através de preconceitos, ou seja, todo indivíduo humano é preconceituoso.
Mas se o processo de socialização é um processo de assimilação de preconceitos isso não significa que não se pode abrir mão dos preconceitos assimilados. Quem se propõe a filosofar deve por em dúvida os preconceitos assimilados. No esforço de chegar a verdade. É necessário duvidar daquilo que foi ensinado para começar de novo. É por essa razão que se diz que a filosofia tem inicialmente que destruir para depois construir. A filosofia socrática é um bom exemplo desse processo.
Quando o homem experimenta a atitude filosófica, o passo inicial está dado, mas apenas o espanto e a admiração não fazem de alguém um filósofo. Há que saber indagar e refletir. A indagação é a expressão de uma pergunta, geralmente sobre: a)o que é a coisa; b)como é essa coisa; c) de que forma eu percebo essa coisa. Esta última indagação só pode ser respondida com o ato de reflexão, porque, semelhante a uma imagem diante do seu reflexo num espelho, o pensamento deve ficar diante de si mesmo a fim de poder investigar a própria capacidade de perceber as coisas. A reflexão filosófica é um "voltar-se para si mesmo" a fim de apurar as próprias limitações e possibilidades de conhecimento. Essa reflexão não é uma devaneio fantasioso: é uma investigação. A investigação filosófica consiste em "repensar o já pensado, para pensar o ainda não pensado".[3]

Notas
[1] Aristóteles. Metafísica. Brasília: Editora da UNB, l985. I, 2, 982b.
[2] Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio. p. 15.
[3]  Martin Heidegger. Que é isto a Filosofia? Identidade e Diferença. São Paulo: Duas Cidades, 1971. p. 19.

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