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domingo, 30 de janeiro de 2011

Cortina de Fumaça - O documentário como documento

Se é possível iniciar uma reflexão sobre Cortina de Fumaça que não esteja ligada à descriminalização ou efeito das drogas sobre a sociedade, isso certamente reside naquilo que foi aparentemente o mais criticado ou ignorado pelas primeiras reações do público ao filme: sua própria documentalidade.

Afinal, o filme se organiza como um discurso munido de argumentos de várias áreas do conhecimento para constituir uma consistente ação de defesa de um ponto de vista sobre uma questão que cada vez mais se mostra aprofundadamente complexa. Elaborando uma trajetória de sequências que se realojam textualmente em direção a uma proposta engendrada e fechada, sentimo-nos até, de certa forma, acuados ou encurralados por sua força argumentativa. Como um dossiê planejado com objetividade, público-alvo, intenções primárias, secundárias e terciárias, Cortina de Fumaça abre nossos olhos, diante de um universo de produções pseudo-ensaísticas e pseudo-artísticas, e nos recorda: documento.

Apesar de, na fala do diretor Rodrigo Mac Niven ao apresentar a avant-première na 14ª mostra de Tiradentes, o filme se propor a “abrir um debate”, percebemos logo nas primeiras sequências que assistiremos a um produto muito bem calculado, de estratégia de convencimento, formatado como trabalho de investigação científica. Somos apresentados, em primeira instância, ao universo histórico e cultural do consumo de drogas, sempre balizado em especialistas cujas referências completas nos são apresentadas sem obscuridade. Ficamos sabendo das inconsistências históricas da proibição e dos tabus relacionados ao tema a partir de uma exposição clara e causal. Logo depois, temos uma trajetória médica, neurológica e psicológica do uso de drogas (em especial da maconha), também disposta a desmistificar clichês e afirmar usos terapêuticos e recreativos, com proporções científicas de perda e ganho.

Não é surpreendente que, depois de culturalmente descobrirmos que as tintas que pintaram a Mona Lisa e a Capela Sistina serem feitas de resina de cânhamo, e que o consumo da erva não apenas não destrói neurônios, como pode alimentar deficiências no nosso natural sistema endocanabinóide, somos conduzidos às consequências gravíssimas provocadas pela arbitrariedade da proibição, desde os bilhões praticamente jogados no lixo desde os anos 70 em guerras contra as drogas, até o catastrófico efeito de uma parte considerável da violência mundial se originar a partir do tráfico. O filme finaliza com consistente debate sobre a natureza jurídica da proibição e suas consequências sociais, operando uma criminalização e segregação em larga escala das populações pobres.

No fim das contas, o que se argumenta é que não há razões de saúde, econômicas, jurídicas ou morais que sustentem danos tão excruciantes à humanidade para a proibição de algo que, apesar de poder causar mal-estar, infelicidade e morte, não sustenta relação custo-benefício tão desigual. Desta maneira, pensando talvez no formato inteligível televisivo da BBC, Cortina de Fumaça seria análogo a uma defesa de mestrado preparada por um aluno estudioso e empenhado em mostrar resultados de uma pesquisa que envolve uma quantidade grande de variáveis, sem flutuações filosóficas ou ultrapassar debates éticos muitos profundos, restringindo-se a uma correlação de dados como defesa de um ponto-de-vista, utilizando o cinema para tal. O que Rodrigo Mac Niven faz é, curiosamente, uma das intenções originais sobre as quais pensava o Lumière inventor do cinema: usar a câmera para registrar e documentar fatos, com fins científicos, criando uma consciência comum ou debate qualificado sobre o mundo e as coisas.

Nesse sentido, esta estrutura documental simples, de despojamento direto e até certo ponto franco, com eivos jornalísticos e investigativos, mas sem petulância à Michael Moore, serve para nos lembrar que o cinema é também uma caneta. Certamente não a caneta do escritor, como queria Alexander Astruc e a Nouvelle Vague (hoje algo impróprio e até desrespeitoso com a equipe de produção de um filme), que seria capaz de fazer do cinema um canal para a subjetividade do artista, mas uma caneta precisa e objetiva, uma câmera-teclado, capaz de fazer do audiovisual um promulgador de conhecimento enfático, dedutivo. Pensando assim, não faz muito sentido pensar no assunto do filme, neste momento, per si. Os fatos e dados estão todos lá, recapitulados de forma orgânica e causal, de maneira que sua mãe, seu namorado da igreja, seu amigo policial, seu tio fazendeiro, a moça que trabalha na sua casa, todos podem entender o trajeto desta defesa com precisão. Refutar essa argumentação requereria produzir um outro dossiê, redigido como uma contra-tese, que requer uma nova pesquisa, que também se mostre franca e objetiva, alimentando dialeticamente o debate, trazendo à tona a digitação de um novo documento.

Por Ciro Inácio Marcondes, crítico e Professor de História do Cinema pelo IESB e
pela UnB.

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